“Juízes têm dificuldade em definir maus-tratos”

21/09/2010 0 comentários

Num país que se diz de brandos costumes ainda é vulgar o recurso às palmadas para disciplinar, reprimir ou castigar os mais pequenos. Quando toda a retórica se esgota aplica-se a conhecida bofetada para que os miúdos percebam quem manda em casa. Censuras à parte, a verdade é que a distância entre um simples estalo e maus-tratos ou abuso a menor é bastante ténue, tornando-se difícil uma definição. Foi para debater as implicações médico-legais das agressões contra menores que a associação Medjuris convidou, na noite de ontem, a pediatra Júlia Guimarães e a especialista em Medicina Legal Cristina Pereira para mais um debate no Clube Literário do Porto.

Mas afinal o que são maus-tratos? O código penal português estipula que para o crime de maus-tratos a menor tem de haver prática reiterada, ou não, de maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais. Já a organização Mundial de Saúde, de uma forma mais abrangente, define abusos ou maus-tratos às crianças como todas as formas de lesão física ou psicológica, abuso sexual, negligência ou tratamento negligente, exploração comercial ou outro tipo de exploração, resultando em danos actuais ou potenciais para a saúde e desenvolvimento da criança.

Debate abordou dificuldades na definição de maus-tratos
É pela diversidade de critérios, que um juiz, confrontado com um processo em que a vítima é um menor, “tem muita dificuldade em definir maus-tratos, especialmente quando não são situações flagrantes como abuso por um pai a uma filha”, salientou Júlia Guimarães, também professora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. É que “desde o infanticídio, até às lesões, fracturas ósseas ou síndrome da criança abanada, tudo são situações ou patologias orgânicas simples de definir”, acrescentou.


Factores psicológicos e culturais
Além destas há certas “áreas de barreira”, como os maus-tratos psicológicos, praticados no sentido de magoar ou ferir as crianças. Sobre os menores, que agora têm “mais valor intrínseco que há 20 ou 30 anos”, é frequentemente criada uma expectativa pelos pais que nem sempre se cumpre, levando a que estes exerçam toda uma pressão capaz de desestabilizar o desenvolvimento do educando.
Nas escolas há sempre um mais tímido, um que não aprende tão bem alemão, outro que não vai ser capaz de seguir medicina como o pai tanto queria e nascem então os problemas em casa. “Os pais têm enormes expectativas e transferem-nas de forma errada”, lamentou a docente. Porém, não é mau-trato querer que um filho seja médico, é mau-trato quando o menor é penalizado porque não corresponde a esse padrão.

Cristina Pereira - Instituto Nacional de Medicina Legal
Factor importante ainda a ter em conta é a cultura em que a instituição ‘família’ se insere. Cada sociedade tem as suas práticas e rituais e o que é considerado agressão num determinado local, não o é noutro. Tudo depende da moral e bons costumes socialmente instituídos, dentro de alguns limites. Por isso mesmo, situações há de abuso sexual em que os progenitores, desculpando-se nos costumes (porque o abuso é transgeracional e aprendido), consideram lícita a sua prática. Ainda assim, e como o crime de maus-tratos a menores é um crime público, quem o presenciar ou dele suspeitar tem a obrigação de sinalizar essa situação às entidades competentes.  
 
Exames médico-legais
Para os próprios peritos que realizam os exames às crianças alegadamente vítimas de abuso “há diferentes definições” tornando-se “difícil a articulação entre todos os profissionais por que a vítima vai passando”, explicou Cristina Pereira do Instituto Nacional de Medicina Legal. Por esse motivo torna-se crucial a “formação de cada profissional de forma interdisciplinar” para se possível definir a sua área de actuação. O ideal seria um exame físico e psicológico em simultâneo, tendo em conta que “a primeira versão contada pela criança é a mais verdadeira” pelo que “não se pode perder tempo” nem expor o menor a exames sucessivos. Além disso, “há que ser o mais objectivo possível”, salientou a especialista forense. Apesar de “a criança precisar de empatia e mimo, acima de tudo necessita de sentir que tem ao seu lado um profissional capaz de lhe resolver o problema”, frisou.

     
O primeiro passo par a sua solução é a sinalização da possível agressão ou abuso. Uma bofetada pode ser o início de algo que se torne recorrente e mais violento. A maioria das sinalizações em Portugal é feita por professores que nas aulas se deparam com as chamadas ‘nódoas negras’ que nem sempre têm uma explicação. Quando esses hematomas se tornam repetitivos, e há até historial de absentismo escolar, o professor pode estar em frente a um caso de maus-tratos em família.

Detectado o abuso, fica a questão. Deve a criança permanecer em casa dos agressores, ou transferida para uma casa de acolhimento? Na primeira hipótese, arrisca-se a que os abusos continuem, na segunda volta-se a penalizar a criança que é retirada do seu meio. A pediatra Júlia Magalhães defende que “o afastamento dos pais deve ser feito em último recurso, sendo que o poder paternal deve ser mantido
 

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