Num país que se diz de brandos costumes ainda é vulgar o recurso às palmadas para disciplinar, reprimir ou castigar os mais pequenos. Quando toda a retórica se esgota aplica-se a conhecida bofetada para que os miúdos percebam quem manda em casa. Censuras à parte, a verdade é que a distância entre um simples estalo e maus-tratos ou abuso a menor é bastante ténue, tornando-se difícil uma definição. Foi para debater as implicações médico-legais das agressões contra menores que a associação Medjuris convidou, na noite de ontem, a pediatra Júlia Guimarães e a especialista em Medicina Legal Cristina Pereira para mais um debate no Clube Literário do Porto.
É pela diversidade de critérios, que um juiz, confrontado com um processo em que a vítima é um menor, “tem muita dificuldade em definir maus-tratos, especialmente quando não são situações flagrantes como abuso por um pai a uma filha”, salientou Júlia Guimarães, também professora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. É que “desde o infanticídio, até às lesões, fracturas ósseas ou síndrome da criança abanada, tudo são situações ou patologias orgânicas simples de definir”, acrescentou.
Factores psicológicos e culturais
Além destas há certas “áreas de barreira”, como os maus-tratos psicológicos, praticados no sentido de magoar ou ferir as crianças. Sobre os menores, que agora têm “mais valor intrínseco que há 20 ou 30 anos”, é frequentemente criada uma expectativa pelos pais que nem sempre se cumpre, levando a que estes exerçam toda uma pressão capaz de desestabilizar o desenvolvimento do educando.
Nas escolas há sempre um mais tímido, um que não aprende tão bem alemão, outro que não vai ser capaz de seguir medicina como o pai tanto queria e nascem então os problemas em casa. “Os pais têm enormes expectativas e transferem-nas de forma errada”, lamentou a docente. Porém, não é mau-trato querer que um filho seja médico, é mau-trato quando o menor é penalizado porque não corresponde a esse padrão.
Factor importante ainda a ter em conta é a cultura em que a instituição ‘família’ se insere. Cada sociedade tem as suas práticas e rituais e o que é considerado agressão num determinado local, não o é noutro. Tudo depende da moral e bons costumes socialmente instituídos, dentro de alguns limites. Por isso mesmo, situações há de abuso sexual em que os progenitores, desculpando-se nos costumes (porque o abuso é transgeracional e aprendido), consideram lícita a sua prática. Ainda assim, e como o crime de maus-tratos a menores é um crime público, quem o presenciar ou dele suspeitar tem a obrigação de sinalizar essa situação às entidades competentes.
Para os próprios peritos que realizam os exames às crianças alegadamente vítimas de abuso “há diferentes definições” tornando-se “difícil a articulação entre todos os profissionais por que a vítima vai passando”, explicou Cristina Pereira do Instituto Nacional de Medicina Legal. Por esse motivo torna-se crucial a “formação de cada profissional de forma interdisciplinar” para se possível definir a sua área de actuação. O ideal seria um exame físico e psicológico em simultâneo, tendo em conta que “a primeira versão contada pela criança é a mais verdadeira” pelo que “não se pode perder tempo” nem expor o menor a exames sucessivos. Além disso, “há que ser o mais objectivo possível”, salientou a especialista forense. Apesar de “a criança precisar de empatia e mimo, acima de tudo necessita de sentir que tem ao seu lado um profissional capaz de lhe resolver o problema”, frisou.
Detectado o abuso, fica a questão. Deve a criança permanecer em casa dos agressores, ou transferida para uma casa de acolhimento? Na primeira hipótese, arrisca-se a que os abusos continuem, na segunda volta-se a penalizar a criança que é retirada do seu meio. A pediatra Júlia Magalhães defende que “o afastamento dos pais deve ser feito em último recurso, sendo que o poder paternal deve ser mantido”
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